14 de setembro de 2021

“A alma encantadora de Ponta Grossa”, artigo reitor Miguel Sanches Neto

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Amanhã, 15, a cidade de Ponta Grossa completa 198 anos. Como parte das homenagens à cidade, Miguel Sanches Neto, reitor da UEPG, aborda a história do Município em seu texto, que é parte do Prefácio do livro ‘Miscelânea da História de Ponta Grossa’ – obra de Manoel Cyrillo Ferreia, que em breve será relançada pela Editora UEPG.

Se há uma matriz mental para as notas colecionadas rapidamente por Manoel Cyrillo Ferreira, está no livro didático de Afonso Celso – Por que me ufano de meu país (1900). O volume Miscelânea da História de Ponta Grossa (que a Editora UEPG publicará em breve) é um “Por que me ufano de minha cidade”. Sua visão é a de quem estava integrado à vida social e fazia parte das tomadas de decisão do município. Fala longamente da Santa Casa de Misericórdia porque participa de sua diretoria. Não há, portanto, espaço para os problemas da cidade, pois a concepção de cidadania – refere-se às grandes figuras locais como “o cidadão Fulano de Tal” – é a das projeções social, econômica, política e cultural. O livro se caracteriza como um misto de memórias, crônicas ligeiras, contabilidade, propaganda e catálogo, unido pelo orgulho da cidade, que se destaca como a segunda em importância no Paraná. Fragmentário e oficialesco, parcial e apaixonado, tendendo para o colunismo social e para o registro burocrático, o volume revela alguns fatos curiosos, que merecem destaque porque dão os contornos de uma identidade local que então se formava.

A maior importância da obra está no mapeamento da cidade. Manoel Cyrillo Ferreira descreve sua organização, seja pelas colônias, seja pelas edificações, seja pelo tipo de comércio, indústria, religião ou lazer. Ficamos conhecendo a diversidade da composição urbana e rural de Ponta Grossa em um desfile de nomes de prestígio. Preponderam ainda os sobrenomes ibéricos, os do início da colonização – definidos como “os naturais”. Surgem os estrangeiros empreendedores (“os vindouros”) e aparecem rapidamente as figuras populares, principalmente como grupos (refere-se com frequência aos russos-alemães) e como tipos enlouquecidos que vagam pelas ruas com suas manias. Estes últimos são figuras caricaturescas, destacadas porque risíveis. Há muita alta sociedade e pouco povo no livro porque, como ficou dito, a obra foi escrita a partir do lugar social do autor, com intenção de elogiar as autoridades, as pessoas de posse e a constituição de seus espaços de cultura, lazer, trabalho e fé.

Neste mapeamento, encontramos referências a prédios que compunham a paisagem urbana e nos perdemos por ruas que brotam vivas nas descrições. A leitura é um flanar por uma Ponta Grossa já com densidade histórica, fixada em plena Era Vargas, quando a região se desenvolvia sob o comando nacional do mandatário que ela ajudara a alçar ao poder na Revolução de 1930 – uma revolução feita por Getúlio Vargas a partir de Ponta Grossa. Este passeio é agradável e o leitor colhe aqui e ali alguns episódios característicos.

Interessante, por exemplo, foi saber que a estrada de ferro Curitiba-Ponta Grossa, oficialmente inaugurada em 1894, começou a funcionar antes, transportando tropas por conta da Revolução Federalista. E que, durante essa invasão, a população local não se opôs, entregando vacas leiteiras a serem carneadas para alimentar os revolucionários. Isso diz muito de um espírito local, afeito a receber os vindouros, seja pela atividade histórica dos tropeiros, seja pela expectativa de lucrar com os imigrantes que aqui aportavam. Entre a guerra e a paz, somos antes pela última. Quem enfrentou os revolucionários foi a Lapa, interrompendo a marcha deles.

É curioso também saber que, entre 1892 e 1893, por falta de cédulas menores, a cidade criou a própria moeda, de circulação local, uns cupons de 100 a 500 réis, que foram muito utilizados. De espírito econômico, preocupado com guardar para o futuro, o ponta-grossense não gastou todos os cupons que recebeu para, em vez disso, constituir poupanças caseiras que, anos depois, não teriam valor algum.

Esta Ponta Grossa nascida no morro da catedral tinha, no momento da edição do livro (1936), pouco mãos de 30 mil habitantes. Havia deixado para trás seu modelo econômico principal, a extração da erva-mate e da madeira, e vivia de novas atividades: as nascidas com a estrada de ferro, a presença dos militares com seus soldos e a Cervejaria Adriática, representação da indústria exportadora, possível agora graças às linhas férreas. O tecido urbano se espraia com a força operária (invisível no livro), mas o autor reconhece tratar-se de uma “cidade que trabalha, sem distinção de classe”. Bairros e colônias são povoados a ponto de exigir outros tipos de serviço, como o transporte urbano, iniciando “o movimento dos auto-ônibus da Empresa Irmãos Rizental”, inaugurada por volta de 1930.

Manoel Cyrillo Ferreira publica seu livro neste período de mudança econômica e urbana, em que ainda prevalecem os sobrenomes importantes, alma social da Ponta Grossa que se destaca, enquanto tem como motor da economia uma gente trabalhadora, que não é nomeada mas a quem se credita o processo de desenvolvimento.

Entre naturais e vindouros, a Ponta Grossa moderna, que hoje vive um novo processo de crescimento, querendo retomar o lugar que tinha à época, de mais importante município do interior do estado, nasce nos anos 1930 para se consolidar nos anos 1950, com a criação das faculdades. Aí, então, já seríamos um centro produtor de conhecimento, com intelectualidade e técnicos formados aqui, e atrairíamos outro tipo de vindouro, o que chegava para lecionar, para pesquisar, para dinamizar o conhecimento local.

Na cidade moderna, diluem-se os sobrenomes e cresce a circulação monetária entre as classes, permitindo sonhar um espaço democraticamente aberto a todos. Manoel Cyrillo Ferreira, ao mesmo tempo em que rende homenagem ao modelo social de onde veio, anuncia o fim deste ciclo. A partir dele, é a cidade que vai se tornando uma grande miscelânea de pessoas, trajetórias e projetos – com suas grandezas e suas misérias. Sem dúvida, este livro é um valioso documento do fim de um tempo e de anúncio de outro:  um agora que ainda está em curso.

Ponta Grossa, setembro de 2021.

Professor Miguel Sanches Neto é escritor e reitor da UEPG.


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